31 agosto 2006

Alvarenga - Prospecção Arqueológica no Baixo Paiva

.
.
PROSPECÇÃO ARQUEOLÓGICA NO BAIXO PAIVA
ALVARENGA (AROUCA, AVEIRO)
RESULTADOS DA 1ª CAMPANHA
OUTUBRO 2005 - JANEIRO 2006
Artigo publicado sob autorização da Associação BioAlva©
.
.
No cumprimento dos seus fins, a BioAlva tem efectuado frequentes saídas de prospecção arqueológica, tomando como principais fontes a tradição oral e informações publicadas desde o início do século XX, por autores como Madureira (1907), Mendes (1995) e Barroca (2003). Mais recentemente, a publicação da Carta Arqueológica de Arouca, coordenada por António P. Silva e publicada pela Câmara Municipal de Arouca em 2004, trouxe mais algumas informações relativas à freguesia de Alvarenga.
Numa das prospecções efectuadas, como acima se referiu, a BioAlva descobriu, em 31 de Outubro de 2005, no Monte de Baixo, num local referenciado pela população como Côto do Carvalhal, vestígios de ocupação humana, datada, de acordo com os materiais arqueológicos recolhidos à superfície, de entre o Bronze Final e a Alta Idade Média, aqui com particular destaque para o período entre os sécs. X a XII. Tal sítio, localizado a meia encosta, não coincide com a descrição feita por António P. Silva sobre um outro que denominou Castelo de Carvalhais e que este autor implantou em cabeço de forma cónica, na vertente oposta àquela a que nos referimos. Poderá, contudo, coincidir com o local onde foram feitos os achados relatados por Madureira e publicados em 1907. Segundo aquele autor “Haverá approximadamente 60 e tantos annos que alguns individuos ali foram procurar thesouros de mouros e encontraram n’aquellas ruinas pás de ferro e outros objectos do mesmo metal, pequenas rodas de barro, um fôrno, que no correr dos annos se havia sumido na terra, etc.” (in Gazeta de Arouca, n.º 78, 17 de Fevereiro de 1907).
Este sítio arqueológico, posto recentemente a descoberto devido à abertura de um caminho de serventia ao plantio de eucaliptos, relaciona-se certamente com estruturas visíveis na margem esquerda do rio Paiva, podendo todo este conjunto ter estado directamente ligado com a hipotética localização da “ponte velha”, assim designada pela população e referida por alguns autores como datando de 110 d.C., durante o período do imperador romano Trajano. Tal ponte teria sido destruída por uma forte enchente do Paiva no séc. XIV e dela desconhece-se a localização exacta.
Os materiais arqueológicos supramencionados são constituídos por fragmentos de cerâmica, entre os quais se contam bordos, asas e fundos, assim como cerâmica decorada com incisões e cordões digitados, que se assemelham a materiais provenientes de outros sítios arqueológicos de características comparáveis (Rodrigues e Rebanda, 1992). Entre as peças cerâmicas contam-se ainda uma tampa (N.º 8) e marcas de jogo (n.º 7), assim como o que parece ser um fragmento de uma pequena taça mamilada de cronologia tardo-romana (n.º 1).


Peça nº 8


Peça nº 7


Peça nº 1

De entre estes destacam-se ainda peças que se apresentam decoradas de acordo com um mesmo padrão: duas linhas paralelas incisas, intercaladas em bandas com ondas ou ziguezagues simétricos e em alguns casos assimétricos, como é o caso da peça n.º 11, com paralelos nas panelas de fase I do Castelo de Curiel (Peñaferruz, Gijón) integrável em cronologia pertencente ao séc. XII. Os restantes fragmentos, todos pertencentes a bojos ou panças, independentemente da espessura, repetem a mesma tipologia decorativa (n.ºs 9, 10, 12 e 13).

Peça nº 11

peça nº 9


Peça nº 10


Peça nº 12


Peça nº 13

O exemplar do Côto do Carvalhal n.º 16 encontra paralelos nos alguidares ou taças de fundo em disco provenientes de São João de Valinhas (Sta Eulália, Arouca) atribuídos aos séculos XI-XII. A peça n.º 17 deverá fazer parte da anterior.


Peça nº 16


Peça nº 17

As pastas são maioritariamente resultado de cozedura redutora, com uma minoria de peças provenientes de cozedura oxidante. A tipologia varia entre as peças de acabamento grosseiro, com elementos não plásticos de grão médio a grosso, mal acabadas e excessivamente queimadas, e as peças de espessura mais fina, que apresentam elementos não plásticos de grão fino a médio, acabamento cuidado e em alguns casos vestígios de brunido ou alisamento exterior.
São ainda de salientar os numerosos vestígios de escória de fundição (de primeira e segunda extracções, nomeadamente escória vítrea de sangria de forno).


Escória de fundição

Alguns artefactos líticos: um movente, um polidor.

Movente

Polidor

Alguns cossoiros (nºs 3 e 4), um cossoiro inacabado (N.º 6), um possível peso de tear (N.º 5) e um fragmento de lâmina ou raspador em sílex
[1].


Peça nº 3



Peça nº 4
Peça nº 6
Peça nº 5

Este sítio arqueológico enquadra-se assim, em nosso entender, no sistema defensivo existente desde o século IX, na linha de fronteira entre os reinos cristão e muçulmano.


Esta era bastante flutuante, como é sabido, mas adjacente aos limites do rio Douro; de facto, a predominância do reino de Leão e das Astúrias sobre este território coincide com o destacamento, no final do século X, de nobres provenientes de outros reinos do centro da Europa, que teriam vindo em auxílio das forças reais leonesas durante a Reconquista. Falamos dos ascendentes do aio Egas Moniz, originários da Gasconha, e do pai e tio de Afonso Henriques, o conde D. Henrique e seu irmão, D. Raimundo, vindos da Borgonha. Deste modo, a ligação a Leão seria bastante evidente. A linhagem dos Alvarengas descende, exactamente, de um dos filhos da casa dos senhores de Ribadouro, D. Egas Moniz, o Aio, pelo seu casamento com a filha de Afonso VI, rei de Leão, tornando-se os seus descendentes ainda os senhores da Honra de Alvarenga (ver anexo 1).
Do ponto de vista morfológico, o sítio corresponde aos castelos roqueiros existentes quer na região quer, como já referimos, na zona asturiana de Gijón, perdendo a importância que teria tido com a conquista definitiva de territórios aos muçulmanos e com a consequente implantação cristã na região. A mudança administrativa decretada por D. Dinis, que teria concedido àquela cidade (Alvarenga foi sede de concelho até 1836) o seu primeiro foral em 1298, e no decurso da qual se verificou um crescimento da importância de uma classe senhorial em detrimento dos condados, ditaria o abandono dos castelos roqueiros tradicionais e a construção de outras estruturas defensivas mais funcionais.
Não muito longe do local anteriormente referido encontra-se a Pedra dos Mouros, ponto de observação estratégica - constituído por três grandes blocos graníticos que formam local privilegiado, apresentando um “tecto” escavado - que poderia ter sido incluído na estrutura defensiva medieval, nomeadamente através da aposição (gravação) de uma cruz num plano horizontal, no interior da estrutura, assim como de uma outra gravada na sua face distal (cabeceira).
Por outro lado, acompanhando o caminho antigo que conduzia ao Paiva, num local de entroncamento, deparamo-nos com uma parede de granito amarelo erodido que ostenta um conjunto de cruzes gravadas na rocha.
Embora se lhe atribua o estatuto de marco de propriedade, julgamos que, devido à sua localização ao longo do caminho e ao facto de estarem organizadas num mesmo espaço, estas cruzes representam de facto Alminhas. Para tal contribui ainda a existência das siglas P.N. (Pater Noster) ladeando uma das cruzes, assim como outras, de pequenas dimensões, uma das quais tem uma forma antropomórfica e outra semelhante à da Pedra dos Mouros.
Mais recentemente, no dia 14 de Janeiro do corrente ano, a BioAlva continuou as acções de prospecção na margem esquerda do Paiva, onde se observam, como já referimos, estruturas visivelmente arruinadas que preenchem uma grande extensão ao longo daquela margem, bem como à superfície da vertente que a encima e que é extremamente escarpada. Na tentativa de se dirigir a esse local (e ao qual não se chegou ainda), os membros da BioAlva descobriram três mamoas, um castro e um povoado tardo-romano a altomedieval, vestígios de sepulturas escavadas na rocha (que serão as primeiras descobertas na região do Baixo Paiva), assim como uma mina de extracção de minério. Foram diversos os fragmentos de cerâmica encontrados à superfície, de entre os quais se destacam não só fracções de tegulae e de ímbrices, mas igualmente uma tampa e outros vestígios da mesma matéria-prima; provenientes de uma das mamoas, quase completamente destruída pela abertura de um caminho, foram recuperados à superfície sílices talhados, sobretudo micrólitos, e outros vestígios de cerâmica, muito fragmentados.
Todo este conjunto arqueológico se implanta num cabeço que, pela sua morfologia, se assemelha ao local do achado de dia 31 de Outubro (a que já aludimos supra), encontrando-se fronteiro a este, no outro lado do rio Paiva.
É de registar que algumas estruturas descem pela encosta, constituindo pequenos patamares humanizados ao longo de uma escarpa aparentando outros vestígios de construções possivelmente habitacionais e de forma circular; se se seguisse a sua pendente, chegar-se-ia certamente ao local onde a tradição oral implanta a ponte romana supramencionada e de facto há nesta pendente um caminho que leva a um local do rio onde há dois arranques de uma ponte que já não existe e que daqui segue o caminho, que continua muito escarpado, até ao alto da encosta oposta, na margem direita do Paiva, que é onde fica actualmente Alvarenga. A população usou até meados do século passado este caminho e uma ponte que fazia uso dos referidos arranques
[2]. Sabe-se que os Romanos construiam as pontes em locais em que a passagem era extremamente difícil, tornando esta o único local de travessia possível e de pé seco. Este é um sítio de fortíssimas correntes que projectaram o rio Paiva além-fronteiras como um dos melhores rios para fazer rafting, sendo ainda considerado como o melhor ponto de passagem de todo o rio Paiva.
A prospecção efectuada pelos membros da BioAlva mantém-se, num terreno extremamente escarpado e muitas vezes de díficil acesso, mas continua a mostrar ser um instrumento fundamental para o conhecimento não só do território como do património arqueológico ainda por descobrir tanto na freguesia de Alvarenga como nas freguesias limítrofes.

Anexo 1

ÁRVORE GENEALÓGICA DESDE O SÉCULO V COM THEODORIC I, REI DOS VISIGODOS
PASSANDO PELOS ALVARENGA NOS SÉCULOS XIII E XIV
ATÉ HOJE COM D. ANTÓNIO VASCO DE MELLO DA SILVA CÉSAR E MENEZES

1) Theodoric I, rei dos Visigodos * 417 + 451
2) Euric I Balthes, rei dos Visigodos
3) Alaric II Balthes, rei dos Visigodos + 507
4) Amalric I Balthes, rei dos Visigodos * 502 + c. 530
5) Leovigildo de Setimania Baltes * c. 525
6) Hermenegildo II Baltes * c. 550
7) Antanaguildo Baltes * c. 580
8) Adrebasto Baltes * c. 610
9) Ervigio Favila * c. 630
10) Pedro, duque da Cantábria * c. 660
11) Afonso I, rei das Astúrias * c. 690 + 757
12) Froila I, rei de Leão * c. 725 + 768
13) Froila de Leão * c. 760
14) Bermudo, príncipe de Leão * c. 750 + 842
15) Ramiro I, rei de Leão * c. 770 + 850
16) Ordonho I, rei de Leão * 800 + 866
17) Afonso III, rei de Leão * 838 + 910
18) Ordonho II, rei de Leão * c. 860 + 924
19) Ramiro II, rei de Leão * c. 900 + 965
20) Lovesendo Ramires * c. 940
21) Aboazar Lovesendes * c. 960
22) Ermígio Aboazar * c. 980
23) Toda Ermiges * c. 1000
24) Ermigio Viegas, senhor de Ribadouro * c. 1020 + d. 1047
25) Monio Ermiges, senhor de Ribadouro * c. 1050
26) Egas Moniz, o Aio * c. 1080 + 1146
27) Afonso Viegas, o Moço * c. 1110
28) Egas Afonso de Ribadouro * c. 1140
29) Paio Viegas de Alvarenga * c. 1210
30) Pero Pais de Alvarenga * c. 1230
31) Martim Pires de Alvarenga * c. 1270
32) Inês Martins de Alvarenga* c. 1340
33) João Mendes de Vasconcelos, senhor da honra de Alvarenga * c. 1380
34) Rui Mendes de Vasconcelos, senhor da honra de Alvarenga * c. 1420
35) Joane Mendes de Vasconcelos, senhor de Alvarenga * c. 1480
36) Bernardo de Vasconcelos * c. 1510
37) Guiomar de Vasconcelos * c. 1550
38) Antónia de Vasconcelos e Brito * c. 1585
39) Miguel de Vasconcelos * c. 1610 + 1640
40) Antónia de Melo
41) Miguel Soares de Vasconcelos
42) Isabel Bernarda Maria de Vasconcelos
43) D. Miguel de Abreu Soares Vasconcelos Brito Barbosa e Palha * 1709
44) D. João Domingos de Melo Abreu Soares Barbosa e Palha * 1749 + 1805
45) D. Miguel António de Melo de Abreu Soares de Brito Barbosa Palha Vasconcelos Guedes,
1º conde de Murça * 1766 + 1836
46) D. José Maria de Melo, 2º conde de Murça * 1817 + 1858
47) D. João José Maria de Melo Abreu de Vasconcelos Brito Barbosa e Palha,
3º conde de Murça (irmão do 2º conde de Murça) * 1820 + 1869
48) D. Mariana das Dores de Melo e Abreu Soares de Brito Barbosa Palha de Vasconcelos Guedes, 4ª condessa de Murça * 1856
49) D. António Vasco de Mello César e Menezes, 12º conde de São Lourenço * 1876 + 1928
50) D. António Vasco José de Mello da Silva César de Menezes, 4º marquês de Sabugosa * 1903
51) D. António Vasco de Mello da Silva César de Menezes, 14º conde de São Lourenço * 1931
52) D. António Maria de Mello Silva César e Menezes, 13º conde de Sabugosa * 1959
53) D. António Vasco de Mello da Silva César e Menezes

Notas de roda pé

[1] A confirmar-se pertencer a uma lâmina ou raspador este fragmento de sílex, tal levará certamente ao recuo da cronologia relativa apontada para este sítio, colocando-a num horizonte do Neolítico Final ou do Calcolítico.
[2] Este caminho também foi descrito por Madureira (1907)

Bibliografia

- Barroca, Mário Jorge – «História das Campanhas», in Teixeira, Nuno Severiano; Barata, Manuel Themudo (dir.), Nova História Militar de Portugal, Vol. 1, ed. Círculo de Leitores, Lisboa, 2003, pp. 30 e 73.
- GONZÁLEZ, José Avelino Gutiérrez – Peñaferruz (Gijón). El Castillo de Curiel y su Territorio, VTP Editorial, Ayuntamiento de Gijón, Gijón, 2003.
- Madureira, Manuel Pinto de Paiva – «Alvarenga. Monographia d’esta parochia», in Gazeta de Arouca, n.º 78, 17 de Fevereiro de 1907.
- Mendes, António – Alvarenga, Esboço de Uma Monografia, ed. do autor, 1995, pp. 110-113.
- RODRIGUES, Miguel; REBANDA, Nelson - «Cerâmicas Medievais do Baldoeiro (Adeganha – Torre de Moncorvo)», in 1as Jornadas de Cerâmica Medieval e Pós-Medieval de Tondela, Tondela, 1992, pp. 51-66.
- SILVA, António Manuel S. P.; Ribeiro, Manuela C. S. – «A intervenção arqueológica em S. João de Valinhas (Arouca, Aveiro). Do povoado castrejo ao castelo da Terra de Arouca», sep. de BARROCA, M. J. (coord.), Carlos Alberto Ferreira de Almeida. In memoriam, II, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1999, pp. 363-374.
- SILVA, António Manuel S. P.; Menéndez, Jorge Argüello; Cavalheiro, José T.; Ribeiro, Manuela C. S. – Elementos paleometalúrgicos do castelo de Valinhas (Arouca, Portugal), Cadernos do Centro de Arqueologia de Arouca, N.º 1, Arouca, 2002.
- Silva, António P. da (coord.) – Memórias da Terra. Património Arqueológico do Concelho de Arouca, Arouca, 2004, p. 351.

Sem comentários: